[QUANTAS SAIDEIRAS CABEM AQUI?]
Mais uma, por favor. Já foi. Mesa de bar, simbiose atrapalhada, símbolos esquisitos do passado, lembranças involuntárias do que já fomos. Já vai. Experimenta esse yogurt de frutas vermelhas, diz que é bom, mas que é melhor quando te dou na boca. Metamorfose esdrúxula, voltei pra trás. Dei ré até chegar no desassossego das tantas voltas, tantos mundos e tantos bares. Já é, me perdi, é que eu nunca fui de voltar pra trás. Não sei conviver com o passado, prefiro que tudo seja presente, esse negócio de vai passar nunca colou comigo, eu não quero que nada passe, eu quero que tudo fique. Fica ai, vai. É que pra encerrar nosso passado e renovar os votos, foi preciso voltar até os nossos tantos. E são tantos. A nave bateu nas minhas costas e me jogou nesse boteco, você começa todo durão, eu termino tirando sua calça jeans. Flashback. Sessão de cinema às 14h, foto do mar com as pedras olhando pra nós, o metrô que atrasa e a rodoviária como o primeiro destino. Me assustei, era pra eu ter voltado aqui? Nós, embarcados nos oceanos desgovernados de nós, cotidianamente florescendo no seu colo e perdido na chuva que decretava quem eu me tornaria. Amparado na primeira infância, debruçado nos braços dos meus mais doces e íntimos desejos novelísticos, te vi subir a rua da minha casa e corri ao seu destino, senti uma imprecisa e pura vontade de ser sempre aquele que me tornei quando seu amor me tornou. Eu só queria ser algo e agora eu eu não quero ser nada, tenho pavor de ser, de existir, de caber, de ter que justificar minha existência, que porre. Queria ser esse copo, essa mesa, essa chuva e essa conversa despretensiosamente dilacerante, senti meu corpo rasgando pouco a pouco enquanto seu olhar amolecia, você derreteu enquanto me dizia algo sobre não existir culpa no passado, foi exatamente essa filosofia meia boca que decretou o fim do fim, pronto. Alívio. Ano novo. Estamos aqui outra vez, luzes acenderam. Somos dois aqui e dois de nós não rende uma vírgula de sanidade. Somos dois, mas somos nós, nós somos algo muito além de nós dois, é tipo um terceiro olho, um alter ego ou seja lá que porra posso chamar esse lance que fica exposto pra fora de nós, quando somos nós dois. Matemática básica, eu e você não rende sanidade, mas rende um filme ruim no catálogo horrível daquela plataforma. Filmes ruins são sempre os melhores lugares de projeção, eu me projeto naquele protagonista e te projeto no personagem que me impede de subir no avião. Eu fico, acabou o passado. Mas espera eu entrar no avião pra me impedir de partir, quero correr entre as cadeiras e pedir pra comissária me deixar ir, me deixar chegar até você. Eu sou bom com corridas cenográficas, sei exatamente a velocidade pra chegar até você enquanto a câmera capta minha melhor expressão.
Acordei.
Agora eu sento e rezo, pedindo a Deus pra me libertar do complexo de Penélope, sempre quis ser Penélope, esse foi um dos sonhos que realizei, espalhei sua foto pela cidade com um PROCURA-SE escrito, sentei no muro e fiquei bordando a ausência, não sobrou espaço pra mais nada, as linhas que bordei marcam o tempo da sua distância. E que distância. Eu perdi o cartão telefônico, escrevi tudo que diria quando você atendesse, encostei a cabeça no orelhão e fiquei ali esperando a chuva passar. Impossibilitado de sair, impossibilitado de ficar, impossibilitado de dizer, impossibilitado de ser. Olha as pessoas que passam por nós, tá todo mundo por aí, você é capaz de enxergar? Tá todo mundo tentando, olha bem pra quem tá se refazendo e progredindo e tentando. Nós dois, a gente também tentou, e a gente continua tentando. Essa ruga, o primeiro fio de cabelo branco e a vontade de conseguir. Tentar cansa. Chega de sala de estar com revistas antigas, eu quero ser atendido, quero resolver essa angústia. Quero encontrar o isqueiro que perdi no ano passado. E quando eu encontrar, vou acender o último cigarro no ponto de ônibus e voltar a tentar. Somos dois, continua tentando aí que quando eu achar o cartão telefônico, prometo te ligar pra saber como tudo tem caminhado.